Programa internacional de detecção de neutrinos tem início em fevereiro

Instalado no Fermilab, nos Estados Unidos, o Short-Baseline Near Detector poderá trazer informações cruciais para a compreensão da realidade material. Últimos preparativos foram discutidos em reunião realizada em São Paulo no mês de dezembro

Sistema de fotodetecção do SBND, composto por fotomultiplicadoras e X-Arapucas. Todos esses X-Arapucas foram feitos por empresas brasileiras (foto: Ana Amélia Machado)
Sistema de fotodetecção do SBND, composto por fotomultiplicadoras e X-Arapucas. Todos esses X-Arapucas foram feitos por empresas brasileiras (foto: Ana Amélia Machado)

O Short-Baseline Neutrino Program (SBN) é um encorpado programa para detecção de neutrinos localizado no Fermi National Accelerator Laboratory (Fermilab), próximo a Chicago, nos Estados Unidos. Conhecimentos científicos e aquisições tecnológicas que venham a ser obtidos no SBN são cruciais para o êxito do megaprojeto Dune (Deep Underground Neutrino Experiment), um dos mais ambiciosos experimentos científicos já idealizados, atualmente em construção. Mas, independentemente da contribuição ao Dune, o SBN é importante por si mesmo e poderá trazer informações de primeira grandeza para a compreensão da realidade material (leia mais em: agencia.fapesp.br/25451).

O SBN vai operar, basicamente, com dois enormes detectores: o Short-Baseline Near Detector (SBND), localizado a 110 metros da saída do feixe de neutrinos produzido pelo acelerador; e o Short-Baseline Far Detector, também chamado de Icarus, localizado a 600 metros da saída. A comparação entre as medições realizadas em um detector e outro permitirá entender melhor o fenômeno da “oscilação de neutrinos”, isto é, a transformação de um tipo (sabor) de neutrino em outro. E, eventualmente, confirmar a hipótese teórica de que possam existir outros tipos (sabores) de neutrinos, atualmente desconhecidos. Além desses dois detectores, ainda faz parte do programa o experimento MicroBooNE, que começou a tomar dados em 2015.

Grupos de pesquisadores brasileiros fazem parte do SBND desde a criação da colaboração internacional, em 2015. E uma de suas principais contribuições foi ao sistema de detecção de fótons utilizado no experimento. Essa detecção é realizada por um dispositivo chamado X-Arapuca, que é uma evolução do dispositivo Arapuca, proposto pelos pesquisadores Ettore Segreto e Ana Amélia Machado, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A reunião de inverno da colaboração internacional SBND de 2023 ocorreu pela primeira vez no Brasil, em São Paulo. E foi realizada em dezembro, no Instituto Principia. Participaram 45 pessoas presencialmente e 50 de forma remota, que durante o encontro debateram os avanços na montagem, testes, calibração do experimento, além dos preparativos para as análises de dados e avanços na modelagem computacional dos principais estudos do SBND.

“A reunião ocorreu em um momento de muita expectativa, pois o experimento está em fase final de instalação e, dentro de alguns meses, começará a tomar dados. Esse é o objetivo que mais de 250 cientistas de 40 instituições estão buscando desde 2015”, diz Machado à Agência FAPESP. Doutora em física pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), com pós-doutorado no Laboratori Nazionali del Gran Sasso (Itália) e no Max Planck Institute (Alemanha), ela é apoiada pela FAPESP por meio do programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes (JP-FAPESP).

Sistema de fotodetecção

A pesquisadora conta que 192 X-Arapucas produzidos por empresas brasileiras foram instalados no SBND. E que equipamentos desse tipo também serão utilizados no sistema de detecção do Dune. “Além disso, o grupo brasileiro também contribuiu na simulação do sinal de luz e em sua análise, além da descrição da geometria detalhada do detector para a simulação de eventos. No momento, investigamos ainda a possibilidade de detecção, a partir dos dados, de partículas novas que possam ser produzidas nas interações dos neutrinos no experimento”, afirma.

Para que os X-Arapucas fossem produzidos no Brasil dentro do cronograma estabelecido, apesar de todas as dificuldades operacionais provocadas pela pandemia, foi fundamental a participação de Vinicius do Lago Pimentel, responsável pelos trabalhos de pesquisa e desenvolvimento dos detectores no Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), em Campinas.

“Os filtros foram produzidos em São Carlos, as placas foram feitas perto de Piracicaba e a montagem nós realizamos em Campinas. O argônio usado no tanque do SBND tem que ser extremamente puro. Um argônio com 10 partes por milhão [ppm] de alguma impureza já apresenta um comportamento de cintilação, de emissão de luz, diferente. Antes de serem montados, os X-Arapucas passaram por uma limpeza superminuciosa. No CTI, fizemos a lavagem de todas as peças mecânicas e dos filtros em banho de ultrassom. Tivemos que desenvolver protocolo de limpeza principalmente para os filtros, para evitar o aparecimento de marcas e para que a superfície do filtro tivesse um alto poder de aderência. Mais tarde, já no Fermilab, produzimos o mapeamento dos canais de eletrônica das placas e nos ocupamos também dos testes de funcionamento geral da eletrônica”, informa Pimentel. E conta que, na hora de enviar o material para o Fermilab, nos Estados Unidos, foi preciso convencer os agentes da Receita Federal a não abrir as embalagens herméticas, expondo os detectores à contaminação.

O SBND possui um tanque com cerca de 112 toneladas de argônio líquido, mantido em baixíssima temperatura por um sistema criogênico. Câmeras de projeção temporal permitem a realização de imagens tridimensionais precisas das trajetórias das partículas produzidas como resultado da interação dos neutrinos com o argônio.

“O criostato deverá terminar de ser preenchido com argônio líquido em fevereiro de 2024. O aparato todo é composto por duas partições detectoras principais, separadas por um cátodo central. E conta com dois conjuntos de planos de fios anódicos para coleta de cargas elétricas e um sofisticado sistema de detecção de luz de cintilação por meio dos X-Arapucas. A combinação das medidas de carga e luz permitirá a reconstrução completa das partículas produzidas nos diversos tipos de eventos de interação dos neutrinos com os átomos de argônio”, diz Laura Paulucci Marinho, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro das equipes do SBND, do Icarus e do Dune.

A maior realização do programa do Fermilab seria a detecção do chamado “neutrino estéril”, um tipo de partícula previsto pela teoria, mas que interage tão pouco com a matéria que não pôde ser detectado até hoje.

Novos sabores

“Os neutrinos quase não interagem com a matéria. E, quando interagem, não podem ser percebidos diretamente, pois não possuem carga elétrica. Na interação, partículas com carga são produzidas. São elas que podemos detectar. E, a partir delas, deduzir e calcular a presença de neutrinos. Quando partículas carregadas surgem no interior do argônio devido à interação com os neutrinos, os elétrons gerados são recolhidos no cátodo e contados. A partir disso, a energia da interação pode ser calculada. Ao mesmo tempo, a interação produz luz e essa cintilação no argônio é coletada pelos X-Arapucas. A combinação de carga e a luz permitem reconstruir o evento”, explica a italiana Ornella Palamara, cientista sênior do Fermilab e porta-voz da colaboração SBND, que participou do encontro em São Paulo.

Palamara recorda que os neutrinos fazem parte da classe dos léptons e que três tipos ou sabores de neutrinos são conhecidos atualmente: o neutrino do elétron, o neutrino do múon e o neutrino do tau. “Ao se propagar pelo espaço, um tipo de neutrino pode se transformar em outro. É isso que chamamos de oscilação. Há hipóteses teóricas de que possam existir mais sabores do que esses três. Em especial, se cogita na existência do neutrino estéril”, explica.

Os neutrinos conhecidos, chamados de “ativos”, interagem com a matéria por meio da força fraca e da força gravitacional. Já o neutrino estéril interagiria apenas por meio da força gravitacional. Por ser tão leve e interagir somente pela gravitação, sua presença seria dificílima de detectar. E esse é um dos grandes alvos do Short Baseline Neutrino Program (SBN).

Se ao oscilar do sabor do neutrino do múon para o sabor do neutrino do elétron a partícula tiver que passar por uma fase estéril, isso poderá alterar a taxa de aparecimento dos neutrinos do elétron. Foi exatamente esse tipo de anomalia que os cientistas já observaram em alguns experimentos: havia mais neutrinos de elétrons aparecendo do que o esperado. O SBND deverá registrar mais de um milhão de interações de neutrinos por ano. E a grande quantidade de dados permitirá estudos de interações neutrino-argônio na faixa de energia de gigaelétron-volts (GeV) com precisão sem precedentes. Os resultados poderão ampliar expressivamente nosso entendimento acerca da composição e estrutura do mundo material.

Oito curiosidades sobre os neutrinos

1- Neutrinos têm carga elétrica nula e massa muito pequena (pelo menos seis ordens de grandeza menor do que a massa do elétron).
2- Como consequência da baixíssima massa, sua velocidade é muito próxima da velocidade da luz.
3- Os três tipos de neutrinos conhecidos experimentam apenas a ação das forças fraca e gravitacional.
4- São as mais numerosas partículas com massa da matéria comum.
5- São produzidos em função do chamado decaimento beta por diversas fontes: aceleradores, reatores nucleares, estrelas etc. O ser humano também emite neutrinos!
6- Devido à baixa probabilidade de interação, é estimado que apenas um neutrino proveniente do Sol deva interagir com uma pessoa em toda a sua vida, apesar do fluxo dessas partículas na Terra ser da ordem de 100 bilhões por centímetro quadrado por segundo.
7- Atualmente são conhecidos três tipos (ou sabores) de neutrinos. Ao se propagar ao longo do espaço, o neutrino pode oscilar entre esses tipos.
8- Há hipóteses de que possa haver mais sabores. Em particular, há predições teóricas que apontam para a existência do chamado neutrino estéril, que só interagiria por meio da força gravitacional.

Texto: José Tadeu Arantes | Agência FAPESP

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